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  • Foto do escritorLeonardo Fontes Vasconcelos

O HOMO SAPIENS E O MEDO DA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRO E PELA IA


Arte abstrata relação entre homem e tecnologia

O ser humano é assim, sempre com medo de ser substituído, mas nunca admite isso.


Então, o que faz é atacar aquele, ou aquilo, que julga ter potencial para ocupar o seu espaço.


O bode expiatório da vez é a inteligência artificial, mas já foi a internet (sim, a internet como um todo), o computador, a máquina de datilografia, a indústria, a máquina a vapor e por aí vai.


Mas esse medo não se restringe a ser substituído por coisas. Também é algo que ocorre entre os próprios seres humanos.


A insegurança permeia a experiência de um funcionário mais antigo numa empresa, temendo ser substituído por um novato mais jovem. Da mesma forma, líderes podem se sentir ameaçados por subordinados mais competentes, por vezes, sabotando-os para evitar a perda de seu status. É um fenômeno perceptível entre gerações, onde os mais velhos censuram os jovens, rotulando-os como perdidos, mas na verdade, essa crítica é um disfarce para o medo da substituição - especialmente quando os jovens ostentam valores divergentes dos mais velhos. Surpreendentemente, esse temor de substituição também pode ser encontrado no âmbito familiar, onde pais podem temer, ainda que inconscientemente, serem ofuscados por seus filhos, seja pela juventude, beleza, inteligência ou outros atributos deles. Este receio também se evidencia quando os homens constroem obstáculos ao progresso das mulheres, temendo perder seus lugares para aquelas que demonstrarem ser mais eficientes.


Em relação ao âmbito familiar, a psicanálise, em especial os conceitos de Freud – em suas obras “A interpretação dos sonhos” e “Inibição, Sintoma e Ansiedade” – ensina que o medo do ser humano de ser substituído se origina do ego percebendo uma ameaça e respondendo com ansiedade. O ego pode reconhecer a possibilidade de ser substituído como uma ameaça à segurança do indivíduo, seja em seu papel social, em seu emprego ou em suas relações pessoais.


Ou seja, para Freud, quando o ego se sente ameaçado por alguém que aparente é mais qualificado (nos mais diversos sentidos) do que o eu, o ser humano experimenta a ansiedade, que aqui estamos tomando a liberdade científica de igualar ao medo, já que a reação exterior da pessoa quase sempre é de atacar o possível substituto na tentativa de autodefesa, para que não se saia do seu lugar de conforto.


Saindo do campo da psicanálise e passeando na sociologia, Émile Durkheim, sociólogo francês, em sua consagrada obra e “O Suicídio: Estudo de Sociologia” introduz o complexo e amplo conceito de anomia que, se for analisado em conjunto com sua outra obra “Da Divisão do Trabalho Social”, a construção a que se chega é que Durkheim enxergaria o medo de ser substituído como uma manifestação da anomia - um sentimento de desorientação e insegurança que surge de mudanças rápidas e imprevisíveis na sociedade. A ideia de ser substituído, seja por máquinas ou por outros seres humanos, pode perturbar a sensação de ordem e estabilidade que os indivíduos buscam em seus papéis sociais.


Seguindo os conceitos do sociólogo, embora ele não trate diretamente sobre o medo da substituição, o ser humano experimenta esse sentimento devido ao ritmo de mudança que o mundo atualmente experimenta, gerando uma sensação contínua de insegurança e imprevisibilidade social, o que nos remete ao conceito de modernidade líquida de Zygmunt Bauman.


Para Bauman, a sociedade contemporânea passa por um estado de constante mudança e incerteza característicos do mundo atual. Nesta era, as estruturas sociais, os relacionamentos e os valores estão sempre em fluxo, sem um estado sólido e permanente, daí a analogia com o líquido. Esse conceito é introduzido no seu livro “Modernidade Líquida”.


Também sociólogo, Bauman poderia entender o medo de ser substituído como uma resposta à natureza volátil e mutável do mundo moderno. Na modernidade líquida, os papéis sociais e profissionais estão em constante fluxo, criando uma sensação de insegurança e a possibilidade de ser substituído. Tal mutabilidade da sociedade é ainda mais intensificada quando se percebe a presença da tecnologia cada vez mais avançada, como no caso da inteligência artificial, o que deve gerar críticas proporcionalmente agressivas na tentativa de proteção do status quo.


Retomando o medo da mudança geracional, a antropóloga Mary Douglas possui uma obra de grande relevância intitulada “Pureza e Perigo”. Remonto a essa obra porque ela representa bem dois pontos que estamos abordando aqui: o medo da geração mais antiga ser substituída pela mais nova (seja no trabalho ou nas relações sociais mais amplas), e o medo da inserção de tecnologia tão avançada que quebra paradigmas produtivos.


Na perspectiva de Douglas, o medo de ser substituído pode ser uma reação à percepção de que essa substituição viola as normas sociais. A substituição pode ser vista como "impura" ou "perigosa", pois quebra as expectativas existentes sobre como os papéis sociais e ocupacionais devem ser preenchidos.


As pessoas de mais idade costumam criticar os hábitos dos mais novos, dizendo que em seu tempo não era assim. Os profissionais mais tradicionais e com menos abertura ao uso de novas tecnologias criticam aqueles que usam novos sistemas ou dispositivos, até mesmo proferindo falas como “eu prefiro fazer o trabalho raiz”, ou seja, o novo modo de fazer seria impuro.


Para encerrar a parte de análise condensada dos nossos pensadores, não poderia deixar de ser mencionada Sherry Turkle, professora, psicóloga, socióloga e escritora conhecida por suas pesquisas na intersecção da tecnologia e da sociedade, que analisa profundamente as relações que os seres humanos nutrem entre si e com a tecnologia na sua obra “Sozinhos Juntos: Por que Esperamos Mais da Tecnologia e Menos uns dos Outros”.


Turkle, ao pensar no assunto que estamos aqui discutindo, poderia interpretar o medo de ser substituído como um subproduto do nosso relacionamento cada vez mais complexo com a tecnologia. À medida que a tecnologia avança e se torna mais capaz de replicar ou substituir funções humanas, os indivíduos podem se sentir ameaçados e ansiosos.


Percepção que conecta bem os teóricos anteriormente analisados.


Toda essa análise se fez necessária para chegarmos ao cerne do que quero dizer, e tratarei de maneira muito direta agora: o ser humano sempre teve medo de ser substituído. Isso não é algo novo apresentado agora pelo surgimento da inteligência artificial altamente qualificada.


Há gerações, décadas, séculos, o homem se mostra agressivo ao novo puramente por medo de não encontrar mais espaço no mundo. Ocorre apenas que no momento o alvo dessa agressão autoprotetiva é a inteligência artificial (IA).


Ou seja, a maioria das críticas, principalmente as mais calorosas, que se encontram à IA não dizem realmente ao mérito de sua eficiência ou do seu risco real, mas sim ao risco de tirar o homo sapiens sapiens de onde ele se encontra, obrigando-o a procurar nova colocação não somente profissional, mas também social.


O que seria correto, portanto, é que o uso e aplicação da inteligência artificial seja feita de maneira racional e não apaixonada. Observando-se seus pontos positivos e negativos, guiando seu desenvolvimento pautado em valores éticos e com vista ao bem-estar social.


A IA irá sim substituir o homem em diversos segmentos, mas isso não significa que ele não terá mais espaço ou utilidade. O que sugiro é pensarmos duas coisas: qual é o novo espaço do ser humano? E o que é o ser humano?


Particularmente, acredito que esta última pergunta jamais foi satisfatoriamente respondida em toda nossa história.



OBRAS REFERENCIADAS (SEGUINDO AS NORMAS DA APA)


Bauman, Z. (2000). Liquid Modernity. Polity Press.


Douglas, M. (1966). Purity and Danger: An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo. Routledge & K. Paul.


Durkheim, É. (1897). Suicide: A Study in Sociology. Free Press.


Freud, S. (1926). Inhibitions, Symptoms and Anxiety. The Hogarth Press and the Institute of Psychoanalysis.


Turkle, S. (2011). Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other. Basic Books.

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